quinta-feira, 25 de junho de 2009

Individualismo – entre agência e contingência

(Nestes primeiros tempos do nosso blogue, o Diogo Lourenço, aliás Lourencinho, tem sido o comentador mais activo. Na discussão que tive com o Diogo, a propósito das eleições europeias, tornou-se claro que nos separavam concepções antagónicas do homem e da sociedade. E porque não é necessário partir do acessório para discutir o essencial dessas diferenças, aqui fica um post a refutar a noção (neo)liberal de individualismo que tem uma afirmação do Diogo como ponto de partida.)

Demorámos séculos a ultrapassar a ideia de que o ser humano não é apenas um joguete ao serviço da transcendência. Lamento que tenhamos de passar outros tantos até percebermos que o indivíduo é um fim em si mesmo e não um joguete ao serviço da comunidade, dos outros ou da sociedade.
(Lourencinho, aqui )

A afirmação acima transcrita, à primeira vista, parece inatacável. Da mesma forma que todos nós – ou quase todos – rejeitamos a ideia de que o indivíduo está ao serviço de uma qualquer transcendência, deveríamos rejeitar também a sua sujeição a quaisquer interesses supostamente superiores da comunidade ou sociedade. Todavia, creio, está nela implícita uma analogia falaciosa entre transcendência e sociedade. É que, enquanto a transcendência, por definição, é algo que ultrapassa a experiência humana, a sociedade é algo que faz parte dessa mesma experiência – tem, por assim dizer, uma existência fáctica ou fenomenológica.

O problema da libertação do indivíduo do jugo da transcendência é, pois, substancialmente diferente daquele que está em causa na relação entre indivíduo e sociedade. E isto é algo que o pensamento individualista (neo)liberal se tem esforçado por ignorar, ao sustentar a perspectiva atomista de que a sociedade não é mais do que o agregado das escolhas individuais. Para tal, serviu-se de uma construção teórica (o mercado) – em torno da qual se desenvolveu uma disciplina científica (a economia) – que resolve o problema da sociedade negando a existência autónoma desta. Do livre confronto dos desejos dos indivíduos no mercado resultaria espontaneamente o bem comum da sociedade. Ora, estes indivíduos que a ciência económica considera não são seres concretos, imersos num determinado contexto social ou cultural – são abstracções colocadas numa situação hipotética de igualdade formal, fazendo tábua rasa de relações de poder pré-existentes. Na realidade, contudo, os desejos individuais são co-determinados a priori, antes de se manifestarem no mercado, tanto pelas desigualdades naturais entre os seres humanos (inevitáveis), como pela forma de organização social prevalecente.

Este individualismo (neo)liberal, que tem o seu corolário no individualismo metodológico da economia (neo)clássica, funda-se, portanto, na ilusão da ausência de contingência, na ideia absurda de que a agência humana individual actua no vazio. Significa isto que devemos abdicar do princípio individualista? Não necessariamente. Há é que conceber um individualismo que encontre o equilíbrio entre agência e contingência – e esse não é certamente o dos (neo)liberais.

Espero voltar a este tema na próxima semana.

6 comentários:

  1. Pedro

    Antes de mais queria deixar uma ressalva quanto ao que disseste sobre a transcendência. Tudo certo, se notarmos que há a chamada “revelação divina” dentro dos limites da “inferioridade humana”. E os crentes acham que Deus ouve as tuas orações e, pelos vistos, fica mais ou menos zangado com o que tu fazes…

    Há alguns pontos fundamentais que convém explicitar. A sociedade é um organismo próprio com características e dimensões que lhe são peculiares e que afectam os indivíduos. Mas no que toca ao bem-estar, a sociedade é, de facto, uma soma de indivíduos pela simples razão de que não tem consciência. Não faz sentido dizer-se algo como “a sociedade está feliz apesar de os indivíduos não o estarem”. Se por um lado é verdade que é um organismo próprio, convém definir que tipo de características e estados faz sentido serem-lhe predicados. (Um Deus já pode estar mais ou menos contente…) Claro que me podes dizer que a própria ideia de bem-estar é algo socialmente determinada ou construída, logo que estou a andar aos círculos. Mas, mesmo aceitando isso como verdade, o facto de o bem-estar pertencer à esfera do indivíduo (pertence-lhe a consciência), mesmo que eventualmente influenciado pela dinâmica social, implica forçosamente que se explicite a razão de o seu bem-estar ter de se subjugar ao dos outros… Porque é o meu sacrifício pelo bem-estar de outros indivíduos bom? É apenas altruísmo? É a ideia de que já nasço com obrigações para com a colectividade? Porque é que a causa final das minhas acções e esforços, mesmo que realizados em contexto social, deve ser o bem-estar alheio e não o meu?

    Aliás a questão subjacente a tudo isto e a que tens de começar por responder é: “porque é que há conflitos de interesses?” (Será que entre pessoas honestas, que não querem o que não merecem, os há?) Sem conflitos de interesses, é pacífica a identificação de “bem comum” com “bem individual” e a sua associação com “justiça”.

    Creio, contudo, que te excedes na tónica que dás ao social. Falas quase como se o determinismo social e natural fossem absolutos e não houvesse livre arbítrio. Mas o facto é que não só há grande mobilidade social, como esta é mais intensa nas sociedades livres. Na verdade, se os indivíduos forem livres e protegidos contra o uso da força física, conseguem atingir os seus valores na sua medida, através de um caminho por eles definido e prosseguido. Há sorte? Com certeza! Há injustiças? Porventura! Há pessoas favorecidas à priori? Ainda bem! Havendo liberdade isso são meras causas incidentais do falhanço de indivíduos particulares de atingirem uma melhor condição. Tentar tornar essa problemática o fundamento de sistemas políticos e usá-la para legitimar a violação da liberdade individual é não só cair no erro de achar que isso será diferente se se constrangerem esses indivíduos, mas, o que é pior, malvadez, já que se lhes nega a possibilidade de moldarem o seu meio na forma dos seus valores e de ultrapassarem os seus obstáculos como entenderem. É paternalista e igualitarista na sua manifestação mais perversa: o nivelamento por baixo. É terrivelmente injusto.

    É a ideia de que “uma vez que não há igualdade base de circunstâncias, é moral intervir e tentar institucionalmente e através do uso da força física, promover essa ‘igualdade’” em vez de deixar o indivíduo agir e ultrapassar os problemas que a realidade objectiva lhe colocar salvaguardando-o do uso da força.

    Repara que não nego de todo a influência do meio no indivíduo. Mas afirmo que ele tem livre arbítrio, que sabe o que é melhor para si e que é um fim em si mesmo. Claro que se ele decidir sacrificar-se por aquilo que ele chama de bem comum… problema dele!

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  2. (continuação)

    A questão que estava na liça não se referia a problemas metodológicos e epistemológicos (mas fizeste muito bem em puxá-los) de ciências particulares. Há muito trabalho pela frente em economia nessas esferas (mas muito mais nas outras ciências sociais…). A questão prendia-se sim com direitos e liberdades. A liberdade de pensar e de agir é fundamental à existência do homem já que é a sua ferramenta de sobrevivência (logo também é fundamental à sociedade). Daqui ser o único e verdadeiro “direito fundamental”, implícito na própria natureza metafísica do ser humano qua ser vivo. A sociedade pode apropriar-se dela e seriamente diminui-la, mas nunca eliminá-la sob pena de destruição. Mas mesmo com a diminuição e constrangimento excessivos há uma tendência inexorável para o colapso (estou tentado a dar o exemplo da crise financeira actual… mesmo sabendo que me vão responder que, pelo contrário, é o fruto de “excessos de liberdade”.).

    Resumindo, nunca neguei de forma alguma a influência nem a existência da sociedade enquanto organismo com mais dimensões do que a soma simples de indivíduos. Nunca caí no erro de atomizar até ao absurdo. Nego sim a ideia de que exista um “bem comum” que exija o meu sacrifício para ser atingido e ainda mais, que seria moral fazê-lo.

    Quanto ao “neoliberalismo” e à (suposta) excessiva atomização em economia, deixo para outro dia. Ressalvo apenas que não falaste na medida certa quando disseste que se “ignoram” essas determinantes extra-individuais. Estas são é muitas vezes tomadas como variável exógena. (Ex.: compras maçã se o preço for inferior ao teu preço de reserva, i.e., à tua valorização da maçã. Qual o teu preço de reserva e porquê? Isso é contigo… Se for moda comprar maçãs talvez seja mais elevado! As preferências não são, em geral, explicadas em economia)

    Abraço e ate para a semana!

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  3. Diogo,

    Não te vou responder agora em detalhe, porque gostaria de expor primeiro a noção alternativa de individualismo que defendo (em princípio, deverei fazê-lo na próxima quinta-feira, depois de ultrapassado o meu último exame do semestre na quarta). Em todo o caso, queria deixar uma pequena, mas não de somenos importância, ressalva factual: a afirmação de que a mobilidade social é superior nas ditas "sociedades livres" não é corroborada pela evidência empírica. Pelo contrário, ela é maior nas sociais-democracias nórdicas, conforme indicam uma série de estudos comparativos. Aquele que eu li mais detalhadamente há uns tempos, e que me pareceu cientificamente credível (mas isso saberás avaliar melhor do que eu...), está disponível para download em http://ideas.repec.org/p/iza/izadps/dp1938.html. Recomendo-te a leitura.

    Abraço

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  4. Pedro

    Não tive ainda tempo de ler o artigo a fundo, só as ideias gerais.

    Não creio, contudo, que faça muito sentido distinguir, nestes termos, os EUA ou o RU das tais “sociais-democracias”… Basta olhar para alguns indicadores como a despesa pública no PIB ou índices de liberdade económica para ver que hoje não há diferenças enormes entre esses países. O próprio artigo aliás conclui que há pouca mobilidade em qualquer um deles… As diferenças na ideologia explícita podem ser enormes (não que eu ache que o sejam propriamente…) mas na prática a socialização e a regulação excessiva é comum em todo o lado.

    Além disto, o artigo refere que a causa por que nos EUA a mobilidade é menor prende-se com os percentis de topo e de base, i.e., há pouca mobilidade descendente na classe de topo e pouca ascendente na mais pobre. Também convém ressalvar as características próprias das classes de topo americanas, em geral bastante mais ricas do que as equivalentes europeias (ou não? Não tenho a certeza se ainda se aplica) o que pode justificar os dados pela simples dimensão da riqueza acumulada. (Lembro que ainda não li o artigo a fundo logo que estou a especular, nomeadamente ao não saber como eles operacionalizam o próprio conceito de mobilidade).

    De qualquer das formas o teu argumento é profícuo na medida em que me permite esclarecer que não é mobilidade social/económica tout court que é um valor e a que me referia, mas aquela baseada na justiça e competência, ou seja, que é um produto dos esforços dos indivíduos. Na verdade, se tirassem todo o dinheiro ao Belmiro e o pusessem na conta de uma Isaurinha qualquer as matrizes de mobilidade social mudariam… Mas não é disto que eu estava a falar.

    Estou ansioso por conhecer a tua proposta!

    Abraço

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  5. Diogo,

    Deixas-me perplexo: então se "na prática a socialização e a regulação excessiva é comum em todo o lado", quer dizer que as tais "sociedades livres", de facto, não existem em lado algum. E se não existem, não faz sentido afirmar que nelas a mobilidade social é superior - aliás, não faz sentido afirmar o que quer que seja em relação às suas supostas propriedades.

    Eu julgo que existem diferenças substanciais entre os países nórdicos, tendencialmente próximos da social-democracia, e os EUA, tendencialmente próximos do liberalismo, e colocaria o RU algures entre os dois (afinal, apesar de tudo, 20 anos de thatcherismo não foram, felizmente, suficientes para destruir 30 anos de construção do welfare state). A despesa pública em % do PIB permite entrever essas diferenças: ela rondará os 55% na Suécia e os 37% nos EUA, o que me parece constituir, por si só, uma diferença substancial. Mais mais importante ainda é a diferença na qualidade dessa despesa pública: enquanto nos states uma parte importante dela é absorvida por gastos militares, na Suécia prefere-se a aposta na educação, na formação profissional e nos cuidados de saúde, para além do sistema de pensões. E talvez aí se encontrem as razões para a comparativamente maior mobilidade social no espaço nórdico.

    Por fim, o que estamos a discutir não é a mobilidade social em abstracto, mas sim em contextos concretos. E não creio que existam razões para pôr em causa que a mobilidade social nos países nórdicos seja fruto do mérito, da competência e do esforço individuais. O que acontece, no meu entender, é que estes são potenciados pela solidariedade colectiva. Os Belmiros da Suécia não foram desapossados; simplesmente, exigem-se-lhe mais impostos, para que mais Isaurinhas tenham efectivamente uma oportunidade de realização pessoal - se a aproveitam ou não, isso já depende delas. Em troca, os Belmiros suecos têm à sua disposição uma força de trabalho mais qualificada e provavelmente mais motivada. E se a sua riqueza permanece, em parte ou no total, na Suécia, é porque não estão sobremaneira insatisfeitos com a situação e não a vêem como um «roubo»...

    Abraço

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  6. Pedro

    Não fiques perplexo. Infelizmente não há sociedades absolutamente livres, com total e completa separação do Estado da esfera económica. Mas há duas fontes de conhecimento: a estimativa que obténs comparando países com diferentes níveis de coerção (já agora, não considero a Suécia um país relativamente coercivo, no contexto actual…) e o conhecimento filosófico. Mas sim! Talvez não devesse ter usado o presente mas o condicional…

    Cuidado! Quando me referia às diferenças entre os países não era na ideologia mais ou menos explícita que cada um advoga. (Na verdade é tudo condimentado com boa dose de pragmatismo…)

    A diferença no rácio G/PIB é despicienda, se te lembrares de toda a regulação e influência extra (esta crise financeira é um exemplo. A Freddie Mac ou Fannie Mae não existiriam num mercado livre). A despesa é apenas mais um indicador… Lembra-te por exemplo da Standard Oil e das políticas anti-trust que a dissolveram, numa altura em que a despesa pública era de facto diminuta nos EUA.

    Tens toda a razão: há despesa e despesa. Toda ela é, quando financiada pela violência, imoral mas de facto sendo alocada a fins diferentes, produz efeitos diferentes também. Todavia os recursos são escassos e o crowding-out é real. De qualquer forma não creio muito sensato assumir que na Suécia haja particularmente mais mobilidade… As eventuais diferenças prender-se-ão com os extremos, sendo que o artigo sublinha que a mobilidade é baixa em qualquer um dos países.

    A tua “solidariedade colectiva” baseia-se no teu “exigir” mais impostos aos Belmiros. Isso não é solidariedade mas coerção. Se a Isaurinha quer subir na vida, a Isaurinha procura fazê-lo com os seus recursos ou com aqueles que conseguir alcançar legitimamente. Não é usando força física para roubar o Belmiro (que por acaso partiu da Isaurinhice… ). Claro que nada impede o Belmiro de apoiar a Isaurinha se achar que ela merece e que vai beneficiar disso. No sistema que advogas solidariedade é quase impossível, ou então meramente identificável com sacrifício.

    Não sigo o teu raciocínio de “se a sua riqueza permanece, em parte ou no total, na Suécia, é porque não estão sobremaneira insatisfeitos com a situação e não a vêem como um «roubo»...”…

    A qualidade da educação e do capital humano é pano para outra discussão.


    Abraço

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