sábado, 3 de outubro de 2009

A Irlanda e o Nim

Mais uma vez a Europa está no centro das atenções. Ao contrário do que se passou em Junho do ano passado, os irlandeses votaram favoravelmente o Tratado de Lisboa. Como muito se lê por aí, ficou resolvido o impasse criado pela crise institucional aberta pela nega irlandesa.

Sabemos que a Irlanda foi o único dos 27 (por imposição constitucional) a utilizar o referendo como forma de legitimação deste tratado internacional. Apesar de ter noção da importância deste texto constitucional, sobre o qual publicarei um pequeno artigo brevemente, tenho algumas dúvidas sobre a necessidade de referendo para a aprovação do dito tratado. É uma questão de soberania, é certo; envolvem-se interesses nacionais, correcto. Contudo, veja-se o que se passou na Irlanda e, isso sim, considero deplorável. Os irlandeses recusam o tratado – com a ameaça do fantasma da cedência de soberania, o aborto à espreita, etc etc. – e toca a fazer novo referendo, um ano depois, a ver se é desta.

Enquanto europeísta convicto, lamento sinceramente que os líderes europeus dêem razões aos cépticos para questionarem a legitimidade democrática da União; mas efectivamente é o que eles parecem fazer com demasiada frequência. Vá lá que desta vez os irlandeses estavam assustados com a crise, ponderaram a possibilidade de receber mais fundos em troca de uma simples cruz num boletim de voto e foram avisados de que o aborto não seria legalizado com a ratificação do tratado: mais 5% dos eleitores foram às urnas e desses 67,1% votou “sim”.

Agora aguarda-se que a Polónia e a República Checa ratifiquem o tratado, que já se atrasou uns meses em relação ao desejado pelos eurocratas em Lisboa aquando da assinatura do Tratado e a Europa sobe novamente à ribalta do palco internacional, como diz o Süddeutsche Zeitung. Resta-nos agora esperar para ver se realmente a adopção do Tratado trará o reforço institucional que a União Europeia clama como condição sine qua non para que esta desempenhe o papel de uma potência mundial, interventiva e com influência.

7 comentários:

  1. Sereníssimo André

    Se observas que os líderes europeus dão frequentemente razões aos cépticos (palavra com forte conotação, diga-se de passagem… Cuidado com o newspeak) para questionarem a validade democrática da União, como continuas europeísta convicto?

    A tua frase não é de interpretação clara. Das duas uma: ou pretendias dizer que os líderes dão pretextos para se duvidar de uma validade democrática real, ou então (inversa da primeira) que a validade democrática da União não existe, e que os seus líderes estão a seguir a má estratégia de o mostrarem frequentemente.

    Se era a primeira (creio que sim!), então, no meu entender, tens em mãos uma situação gravíssima, pelo que há que questionar os líderes e instituições que dão azo a essas dúvidas, que corroem a relação entre eles e as populações e criam expectativas legítimas mas negativas nestas - daí que a palavra “cépticos” não seja ideal. Neste caso, as tuas convicções europeístas porventura não se relacionam com a ideia de Europa tal como está operacionalizada e institucionalizada. (Mas se calhar relevas a importância destas questões de expectativas e imagem pública, tendo por isso as tuas convicções europeístas sustentadas num solo firme. Se é assim, basta-te de facto lamentar o sucedido na Irlanda, não havendo ocasião para mais análise.)

    Se era a segunda… Então estás no bom caminho para te tornares no comum eurocrata! - Pragmático e paternalista.

    Assim peço-te que me esclareças qual das duas leituras devo fazer (se calhar até uma terceira que me tenha passado despercebida). E, se a primeira, em qual dos dois quadros te colocas: relação de Bruxelas com a população é algo fundamental e muito mal levada a cabo, ou essa relação não merece, no presente, particular atenção (seja porque a consideras de somenos importância, seja porque não está muito mal levada a cabo). Já agora peço-te também, em sede de curiosidade, que me expliques o que queres dizer concretamente com europeísta convicto: se é nesta Europa (pareço um professor liceal a falar da avaliação…) que crês, ou se noutra qualquer com outro arranjo institucional significativamente diferente.

    Abraço

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  2. Caro Diogo,

    Em primeiro lugar, obrigado pelo acompanhamento do nosso blogue e pelo comentário que deixaste. Parece-me, como sempre, bastante pertinente e um agradável desafio intelectual.

    Em segundo lugar, quero passar então a tentar expor as minhas ideias face ao que apontaste no teu texto, esperando ser coerente e completo. Assim sendo, devo dizer que concordo contigo quando consideras a minha frase um pouco paradoxal. E, por isso mesmo, urge desfazer equívocos e esclarecer o meu raciocínio e perspectiva pessoais.

    O conceito de céptico, no que se refere à União Europeia, constitui um termo genérico para qualificar, etiquetando, todos aqueles que se opõem à construção e integração europeias; em suma, ao projecto europeu. Pessoalmente, considero cépticos todos os indivíduos contrários a essa mesma realidade supranacional, seja por que motivos forem – tanto os que não acreditam na União por não se identificarem com os líderes e as suas tendências ideológicas, como aqueles que a acham desnecessária por não verem vantagens em tais estruturas. Ou seja, são aqueles que não acreditam na construção europeia, que não a defendem (com ou sem alterações, atente-se).

    Por contraposição, declaro-me europeísta convicto por considerar que o europeísta é todo aquele que se opõe aos cépticos, na medida em que acredita na Europa enquanto projecto com vantagens, com um futuro e com uma razão de ser. Independentemente de concordar ou não com algumas medidas, instituições ou práticas. Eu posso ser democrata e não concordar com certos esquemas da democracia. A União Europeia e o seu institucionalismo e burocracia podem ter defeitos, que os têm, mas não invalidam que me sinta europeísta e com vontade de participar nessa construção. Se tiver a oportunidade de promover alterações que me pareçam benéficas, através de comentários, pressões ou do meu voto, por exemplo (falando assim muito etereamente), fá-lo-ei. Sou europeísta, convicto por acreditar com grande veemência na União, mas reconheço as suas falhas.

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  3. Ora, torna-se, assim, necessário esclarecer (como inteligentemente apontaste) o meu comentário. Naturalmente, acredito que são os líderes que dão os tais pretextos para se duvidar da capacidade democrática da UE. A própria estrutura institucional tem falhas que começam a ser notadas em termos de proximidade com os “cidadãos europeus”. Repare-se que é esse um dos grandes pontos do novo Tratado – uma União mais próxima daqueles que lhe dão a sua legitimidade: os cidadãos. Ou seja, nós temos uma estrutura com falhas que começam agora a ser contrariadas, por um lado (e que não retiram valor a este bloco regional, porque simplesmente consiste num processo de amadurecimento tal é a vanguarda e o protótipo que esta organização representa); e, por outro lado, temos uns líderes que causam alguns “estragos” à imagem dessa Europa, por exemplo, com a repetição do referendo na Irlanda, sem qualquer cabimento. (Bem, politicamente percebe-se; racionalmente, não)

    A relação da sociedade com Bruxelas é, como se deduz do meu discurso, fundamental para a União Europeia. Carece, contudo, de concretização. Carece de proximidade. É aí que entra o Parlamento Europeu, como forma de compensar a não identificação da população com um grupo de mais ou menos desconhecidos eurocratas que trabalham às escondidas em quarteirões de edifícios em países distantes e que acabam por ter influência nas nossas vidas – principalmente agora com a política monetária que toca bem de perto nos bolsos dos cidadãos, que se revoltam contra a cedência de soberania dos seus países a estas instituições. E outras medidas existem nesse mesmo sentido. Porque se trata, como já referi, de um difícil processo de crescimento e amadurecimento de uma realidade desconhecida até estes pontos.

    É verdade que os líderes corroem as relações UE-sociedade. É verdade que criam, frequentemente, uma má imagem da organização. É também verdade que os cidadãos se vingam dos seus partidos nacionais em eleições europeias. Mas é igualmente verdade que todos aqueles que acreditarem no processo europeu percebem que este tem falhas e que não é motivo para se tornarem cépticos. Eu acredito nesta Europa. Com pequenos ajustamentos, mas nesta Europa. Para acreditar noutra Europa, teria que mudar fundamentos e bases e as suas raízes. Eu defendo pequenas alterações e a continuidade deste projecto.

    Bom, mas a minha exposição está demasiado longa e queria apenas definir alguns pontos de vista. Já tens aqui muito para reflectir!

    Um abraço,

    André

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  4. Ja estava a ver que nao comentavas Diogo :)

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  5. Rt Hon Andrew

    Muito obrigado por teres respondido.

    Fico a aguardar o teu artigo sobre o Tratado. E, já agora, desafio-te a escreveres um outro sobre as razões que te levam a acreditar na União. É tão raro hoje discursar-se explicitamente sobre isso! Normalmente é um tema assumido como auto-evidente…

    Abraço

    Tanja Baila: Comento quando tenho algo para dizer!!! Beijinho

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  6. Pois é, André, este caso do duplo referendo irlandês deixa qualquer europeísta sério à beira de um ataque de nervos. Na minha opinião, devemos ser claros e deixar de lado as falinhas mansas: a repetição do referendo foi uma farsa e um insulto aos eleitores irlandeses.

    E se há algo a retirar do caso, não é tanto o resultado que deverá permitir a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, mas antes uma reflexão sobre a legitimidade democrática da União. E aqui a questão não se resume a más opções dos líderes. Historicamente, o estado-nação é o berço e a lugar por excelência da democracia (da democracia representativa, se quisermos ser mais precisos). Ora, a natureza supranacional do projecto europeu coloca óbvios problemas a este nível. A democraticidade da UE é, necessariamente, mais difusa do que a dos estados-nação que a compõem. Importa aprofundá-la, com certeza, mas não há receitas fáceis para o fazer, até porque, como sublinhou o André, o projecto europeu é algo sem paralelo histórico.

    Por fim, quanto à oposição entre europeístas e cépticos, gostaria de lançar alguma lenha para a fogueira. Porque não, meus caros, ser um europeísta céptico? Ou seja, reconhecer e celebrar a importância e o sucesso histórico do projecto europeu - afinal, trouxe uma paz duradoura a um continente habituado a viver durante séculos num constante derramamento de sangue -, mas ao mesmo tempo defender que ele devia assumir um outro rumo. E a meu ver, deveria transformar-se num verdadeiro espaço de confronto político, deixando de ser essa espécie de paraíso tecnocrático pós-moderno, feito de «consensos» e «competência técnica». Para isso, o Parlamento teria de assumir o papel central - e infelizmente, não é isso que o Tratado de Lisboa consagra.

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  7. Pedro: falaste na medida certa. E estou plenamente de acordo que se possa ser um europeísta céptico. É aliás muito importante salientar-se isso mesmo, e não misturar coisas diferentes sob uma mesma denominação sem se clarificar.

    Com a mistura de palavras, vem a mistura de ideias. E esta é muito difícil de deslindar.

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