terça-feira, 13 de outubro de 2009

Entre Marte e Vénus


Há certas obras que definem um dado momento histórico. Relativamente à política externa norte-americana da era Bush, Paradise & Power, de Robert Kagan, subintitulado America and Europe in the New World Order, é essa obra. Escrito em 2003, nas vésperas da Guerra do Iraque, o livro detém-se sobre o estado de tensão que então emergia nas relações transatlânticas e que se tornou explícito com a oposição francesa e alemã à intervenção militar norte-americana no Iraque. Para o autor, essa tensão não constitui um desencontro pontual e excepcional, fruto de uma mudança radical de prioridades por parte da administração Bush na sequência do 11 de Setembro. Pelo contrário, é a consequência natural de uma longa evolução histórica.

Conhecendo-se o percurso intelectual e político de Robert Kagan, marcado pela proximidade aos círculos neoconservadores, será eventualmente possível ler a obra como uma tentativa de legitimação da doutrina estratégica de Bush. Contudo, penso que vale mais a pena confrontar directamente a exposição de Kagan, em vez de entrar pela especulação em torno de possíveis segundas intenções. A tese central de Paradise & Power é que chegamos a um ponto em que norte-americanos e europeus deixaram de partilhar a mesma visão do mundo – ou, se quisermos ser mais precisos, a mesma cultura estratégica. Os norte-americanos são de Marte; os europeus de Vénus. Ou seja, enquanto os americanos continuam a assumir a power politics como o paradigma fundamental das relações internacionais e se assumem a si próprios como um actor num mundo onde ainda reina a anarquia hobbesiana, os europeus parecem caminhar já para lá da power politics, em direcção a um «paraíso pós-moderno» corporizado pela União Europeia que visa realizar o ideal kantiano da paz perpétua. As implicações desta divergência são enormes. Se de um lado existe um forte poder militar e a disposição para o utilizar, do outro cresce a dúvida em relação à eficácia e à moralidade desse tipo de poder. Se uns atribuem um valor meramente instrumental a tratados e organizações internacionais, os outros vêem neles essenciais fóruns de negociação diplomática e expressões de um desejável multilateralismo.

Quais as razões para esta divisão de caminhos? Certamente, existe na Europa a memória histórica de séculos de sangrenta balança de poderes. Por outro lado, o processo de construção europeia, com a sua lógica própria, veio mudar algumas sensibilidades e também provocar um certo alheamento europeu relativamente às questões internacionais. Contudo, de acordo com Kagan, a principal razão reside no crescente fosso de poder – militar, acrescente-se – entre EUA e Europa. Isso acabou por provocar, numa perspectiva histórica, uma curiosa inversão. Se, no início da sua história, os EUA, numa posição de relativa fraqueza, valorizavam a legalidade internacional, a diplomacia e a negociação, hoje, com uma hegemonia incontestada, são os primeiros a recorrer, sempre que necessário, à acção unilateral. Com os europeus, ocorreu o processo inverso. E se as potências identificam e avaliam ameaças à sua segurança diferentemente, consoante o seu poder ou fraqueza relativos, então é natural que americanos e europeus dificilmente se entendam no contexto actual. É esta, segundo Kagan, a verdadeira natureza do problema transatlântico e também a razão pela qual ele é provavelmente inultrapassável, pondo em causa a coesão do «ocidente».

A análise de Kagan é inegavelmente perspicaz e sempre intelectualmente honesta. Mesmo que, na questão do Iraque ou noutras, estejamos, como eu estou, longe das posições neoconservadoras, é possível subscrever grande parte da argumentação de Kagan. Isto porque há uma questão que permanece sem resposta. Face aos novos desafios na cena internacional, qual a postura mais apropriada? As estratégias «soft» dos europeus ou a abordagem «hard» americana? Depreende-se que Kagan confia mais na segunda, mas o seu esforço argumentativo não é direccionado para essa questão[1]. Em última análise, só o tempo poderá comprovar ou desmentir a previsão de Kagan de turbulência constante nas relações transatlânticas. A atmosfera parece bastante mais desanuviada desde a eleição de Obama, mas ainda é cedo para extrair conclusões. E depois, claro, podemos interrogarmo-nos sobre a centralidade, no quadro actual, dessas relações. O que vale, actualmente, a coesão do «ocidente» (entenda-se aqui o conceito na sua acepção estritamente geopolítica), quando o bloco opositor já desapareceu? Esta interrogação está já para além do âmbito da análise de Kagan. Contudo, importa tê-la em mente para percebermos até que ponto, apesar de tudo, o autor deve ainda muito a uma economia mental herdada da Guerra Fria.

[1] Note-se que, em relação ao Iraque, Kagan parte sempre do princípio que o regime de Saddam possui armas de destruição maciça. Hoje, temos razões fortes para rejeitar essa hipótese.

1 comentário:

  1. Spot-on as usual.

    Pedro, o que achas da palavra "neoconservadores"?

    Abraço

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