sexta-feira, 3 de julho de 2009

Individualismo – entre agência e contingência II

A rejeição do individualismo (neo)liberal não implica a rejeição do princípio individualista – até porque as alternativas que se lhe conhecem (o primado da raça, da nação, da classe, etc.) são tudo menos prometedoras. Implica, sim, a sua reformulação, para que possa abarcar a complexidade das relações entre indivíduo e sociedade.

O cerne da questão reside na autonomia do social, não redutível à soma dos indivíduos e das suas escolhas. E esse corpo autónomo que é a sociedade, governado por dinâmicas próprias, afecta os destinos individuais, colocando limites ao livre-arbítrio. Porém, afecta-os, e logo desde o início, de forma desigual – há quem seja favorecido e quem seja prejudicado pela circunstância social em que a sorte (ou o azar) ditou que nascesse. Aqui, como é evidente, não tem cabimento apelar para qualquer noção de mérito. Ninguém tem o mérito de ter nascido numa família rica ou o demérito de ter nascido num meio pobre. Assim sendo, qual é o grau de desigualdade à partida aceitável? Por outras palavras, quais são os princípios da justiça social? A meu ver, a resposta mais satisfatória a esta questão foi dada por John Rawls, na sua incontornável “Theory of Justice”.

O que Rawls propõe para chegarmos aos princípios da justiça social é uma experiência intelectual, uma situação hipotética. Imaginemos que os indivíduos que compõem uma dada sociedade se reúnem para estabelecer os princípios de justiça que deviam subjazer às principais instituições sociais (sistema político, organização económica, etc.). Assumindo a racionalidade, em sentido estrito, dos indivíduos, seria de esperar que cada um escolhesse os princípios que mais favorecessem a sua posição social. Ora, acontece que, na posição original proposta por Rawls, ninguém sabe o lugar que ocupa na sociedade, em termos de classe ou status, nem os recursos com que a natureza o dotou (inteligência, força, etc.). Assume-se mesmo que os indivíduos não conhecem as suas concepções do bem e as suas propensões psicológicas. A escolha faz-se, pois, sob um véu de ignorância.

Segundo Rawls, «this ensures that no one is advantaged or disadvantaged in the choice of principles by the outcome of natural chance or the contingency of social circumstances. Since all are similarly situated and no one is able to design principles to favor his particular condition, the principles of justice are the result of a fair agreement or bargain.» Desta forma, elimina-se o peso das condições particulares sobre a decisão, assegurando a universalidade dos princípios escolhidos.

Quais são, então, os princípios que os indivíduos colocados na posição original sob o véu de ignorância escolheriam? Rawls acredita serem dois:
«First: each person is to have an equal right to the most extensive basic liberty compatible with a similar liberty for others.
Second: social and economic inequalities are to be arranged so that they are both (a) reasonably expected to be to everyone’s advantage, and (b) attached to positions and offices open to all.»

O primeiro princípio não é mais do que a clássica defesa das liberdades formais individuais. A grande inovação do pensamento de Rawls reside no segundo, na ideia de que é possível e necessário avaliar a justiça das desigualdades materiais efectivas. Os conceitos indeterminados do segundo princípio (o que significa «everyone’s advantage»?) mereceriam uma análise mais profunda. Mas, o que me importa sublinhar aqui é que os horizontes do individualismo não se esgotam num pensamento solipsista que endeusa a agência individual e ignora ou desvaloriza a contingência social. O individualismo de John Rawls funda-se numa síntese bem mais frutuosa entre agência e contingência, permitindo-nos, sem abdicar da perspectiva individualista, conceber uma justiça social.

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